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Existem certos atos que ainda acontecem na investigação policial, sob a chancela do Judiciário, e que – a nosso ver – são inconcebíveis em pleno Século 21 e, mormente, no contexto democrático inaugurado pela Constituição Federal de 1988.

Vou exemplificar apenas dois desses atos.

O primeiro deles diz respeito à ausência de oitiva da pessoa investigada na fase policial, ou sua realização no momento da conclusão do inquérito policial.

Com efeito, o Código de Processo Penal (CPP) é claro quando impõe à autoridade policial o DEVER de, entre outros atos, ouvir o indiciado. Di-lo no art. 6º, V, in verbis:

“Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

 […]

V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura.”

Ocorre que, como sói acontecer, a pessoa está sendo investigada e, muitas vezes, só sabe que o é quando recebe a “visita” da Polícia em sua casa, às 6h da manhã, que lá comparece para cumprir um mandado de prisão e, não raro, de busca e apreensão.

Não bastasse isso, quando a Polícia efetua a prisão, geralmente o inquérito já foi concluído, estando à disposição o Ministério Público para oferecimento da denúncia. Assim, acaba que o investigado/indiciado não é ouvido pela autoridade policial, ou, quando o é, a oitiva dele é apenas uma formalidade da investigação.

A oitiva do investigado não pode ser tratada como uma conveniência do inquérito policial. Não! Quando possível fazê-lo, deve ser vista como uma necessidade da investigação séria e comprometida com a descoberta da verdade dos fatos.

Lembremos que, ao ser ouvido, o investigado pode, v.g., confessar seu envolvimento no crime, fornecer informações importantes para os rumos da investigação e para a própria formação da opinio delicti do Ministério Público no momento de oferecer, ou não, a denúncia.  Aliás, o investigado pode fazer uma delação premiada a ponto de, nos termos do art. 4º, § 4º, da Lei 12.850/2013, sequer ser denunciado.

Vejam que, ao contrário do que se pode alegar, a oitiva do investigado é um ato de suma relevância para a persecução penal.

Outro ato comum de se ver é a condução coercitiva de quem sequer foi intimado para comparecer à presença da autoridade policial.

Ora, o art. 218 do CPP somente prevê a condução coercitiva de TESTEMUNHA – e não de investigados – que, regularmente intimada, “deixar de comparecer sem motivo justificado”.

A rigor, não cabe condução coercitiva de investigado, pois este tem o direito de ficar calado e, portanto, tem até o direito de não comparecer à presença da autoridade policial ou judicial.

A meu ver – e posso estar errado-, tanto a ausência de oitiva do investigado quanto a condução coercitiva dele ou de testemunha sem intimação anterior vilipendiam o princípio da dignidade da pessoa.

Isso porque esses atos nada mais fazem do que transformar o investigado e a testemunha conduzida em meros objetos da investigação, desprezando a sua condição de titulares de direitos.

Daí a agressão à dignidade da pessoa humana.

Como é cediço, esse princípio constitucional, na qualidade de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III), impede que, nas suas relações com o Estado, as pessoas sejam tratadas como objeto das ações estatais. Em outras palavras, o Estado deve ver a pessoa não como objeto, e sim com titulares de direitos que ele precisar reconhecer, respeitar e efetivar.

O mais inquietante de tudo isso é que as Cortes Superiores do nosso país legitimam esses atos. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que as nulidades do inquérito não repercutem na ação penal.

Esse entendimento é vetusto, formado com base num Código de Processo Penal do ano de 1941, que foi inspirado no fascismo italiano e editado sob a égide da Constituição de 1937, que instituiu o “Estado Novo”, no qual não havia espaço para democracia e, muito menos, para falar de dignidade da pessoa humana.

Quando o STF e outros tribunais decidem que as nulidades do inquérito não invalidam atos da ação penal – ou a própria ação -, simplesmente fortalecem o menoscabo não só da dignidade da pessoa humana como também dos direitos e garantias fundamentais.

Nesse diapasão, a professora EULINA MAIA RODRIGUES, em seu livro “INQUÉRITO POLICIAL JUSTO” sustenta a necessidade de um inquérito policial respeite as garantias constitucionais do investigado como pressuposto de um processo penal justo.

Nesse contexto, o ideal seria que a jurisprudência se repaginasse e passasse a entender que a ausência de oitiva do investigado – quando possível fazê-lo – e a condução coercitiva sem intimação anterior da pessoa conduzida afrontam a dignidade da pessoa humana e ensejam a nulidade do ato e outros deles derivados. Mais do que isso: em se tratando de ausência de oitiva do investigado, seria o caso de anular a denúncia – se já oferecida – e determinar que a autoridade policial a realizasse.

 Saliente-se que a nulidade desses atos também encontra arrimo na cláusula do devido processo legal, que, na sua dimensão substantiva, autoriza o Judiciário a aquilatar a justiça de atos legislativos e administrativos – os do inquérito policial o são –, podendo invalidar aqueles arbitrários e desarrazoados. Posso estar profundamente equivocado, mas creio que precisamos – todos nós operadores do Direito – repensar o inquérito policial à luz da Constituição Federal de 1988. Afinal, o Estado, também por meio do inquérito policial, deve concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana.

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