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Quem milita no sistema de justiça criminal brasileiro sabe o que representa para uma pessoa uma acusação penal. Além do aspecto jurídico, tem as consequências pessoais e morais.

Com efeito, “o andamento de um processo judicial significa, inegavelmente, uma coação. Estará o réu obrigado a constituir advogado, a sujeitar-se a interrogatório, a depender de testemunhas, a acompanhar sumários, etc. Ficará numa posição de dependência perante o promotor, o juiz e integrantes da Justiça. Esta situação às vezes se prolonga por anos a fio” (ANTÔNIO JOSÉ MIGUEL DE FEU ROSA. PROCESSOPENAL. Brasília, Consulex, 1999, p. 164, grifo nosso).

Na verdade, a instauração de um processo criminal gera infelicidade na pessoa acusada.

Aristóteles, em “Ética a Nicômaco” (384 a.C./322 a.C), sustentou que a felicidade é o bem supremo e a finalidade da natureza humana. Por isso, cabe ao Estado criar as condições para as pessoas serem felizes.

Deveras, a razão de ser da vida é a felicidade, que, embora dependa da subjetividade de cada pessoa, reclama algumas situações objetivas cuja implementação estão a cargo do Estado. Ninguém vem ao mundo para ser infeliz. Todos têm direito à felicidade, entendida como um “prazer duradouro” (John Locke, 1632/1704).

A busca da felicidade foi reconhecida na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) como um direito inalienável do homem.

No Brasil, a felicidade é um direito (fundamental) que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme preconiza o art. 1º, III, da nossa Constituição Federal de 1988. Mais do que isso! Para alguns autores, o Estado brasileiro reconheceu o direito à felicidade ao dispor, no preâmbulo da sua Carta Magna, o compromisso de assegurar, entre outras coisas, o “bem-estar” das pessoas. Nesse sentido é o pensamento de SAUL TOURINHO LEAL (Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-07/entrevista-saul-tourinho-leal-advogado-professor-idp>. Acesso em: 28/06/2017).

Exatamente porque atinge o direito à felicidade de que é titular a pessoa acusada – e as pessoas em geral – é que a legitimação do exercício da ação penal pressupõe o que se convencionou chamar “condições da ação”, as quais, ao lado dos pressupostos processuais, constituem “requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito”.

Tradicionalmente, três sempre foram as condições da ação, a saber: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir (ou interesse processual) e legitimidade ad causam(ou legitimidade para agir). Faltando qualquer dessas condições, diz-se que o autor é carecedor do direito de ação.

Durante muito tempo, parte da doutrina defendeu que, em relação à ação penal, havia uma quarta condição da ação, qual seja: a JUSTA CAUSA.

Encampando esse entendimento, a Lei no. 11.719/2008, que alterou o Código de Processo Penal, entendeu por bem condicionar o exercício da ação penal não só à presença concreta daquelas tradicionais três condições, mas também à verificação da chamada justa causa.

Destarte, a atual redação do art. 395 do CPP reza que “a denúncia ou queixa será rejeitada quando: […] III – faltar justa causa para o exercício da ação penal”.

Na doutrina, colhe-se que a expressão “justa causa”, referida no supracitado dispositivo legal, reporta-se a um “mínimo de prova” capaz de justificar a deflagração da persecução penal.

Nesse sentido, LUIZ FLÁVIO GOMES, ROGÉRIO SANCHES CUNHA e RONALDO BATISTA PORTO lecionam:

“[…] De qualquer forma, considera-se justa causa aquele mínimo de suporte fático, aquele início de prova (mesmo que indiciária), capaz de justificar a oferta da acusação em juízo” (COMENTÁRIOS ÀS REFORMAS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E DA LEI DE TRÂNSITO. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 337, grifo nosso).  

No mesmo caminho, AFRÂNIO SILVA JARDIM ensina que “torna-se necessária ao regular exercício da ação penal a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Esse suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de fato típico e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade” (Apud LUIZ FLÁVIO GOMES, ROGÉRIO SANCHES CUNHA e RONALDO BATISTA PORTO. COMENTÁRIOS ÀS REFORMAS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E DA LEI DE TRÂNSITO. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 35, grifo nosso).  

No meu entendimento – mas posso estar errado -, ação penal, para ter justa causa, deve está ancorada num conjunto probatório mínimo capaz de gerar um juízo de probabilidade da pessoa acusada ter concorrido para o crime que lhe é imputado na denúncia. Sem essa probabilidade, a denúncia deve ser rejeitada por ausência de justa causa.

Daí a necessidade do juiz, na fase do recebimento da denúncia, ler atentamente o conteúdo dessa peça processual e o analisar elementos de provas em que se baseia.

Esse é o primeiro dever do juiz. Se não cumprir esse dever, não poderá proferir um despacho (ou decisão) que dê legitimidade e legalidade à ação penal.

Parece óbvio esse primeiro dever judicial. Todavia, o que se observa é que, por razões variadas, a maioria dos juízes, se lê, não costuma refletir sobre o inteiro teor da denúncia e, mormente, sobre os elementos informativos que a embasam.

A prática judicial é o recebimento da denúncia quase como um ato automático e automatizado. Raramente se vê um juiz declarar a inépcia de uma denúncia ou reconhecer a falta de justa causa para a ação penal. Essa raridade decorre exatamente do descumprimento do dever de ler a denúncia e analisar seu suporte probatório.

            Tenho a plena convicção – mas posso estar errado – de que muitos processos poderiam ser finalizados ab initio , seja no instante do recebimento da denúncia, seja na análise da resposta à acusação, caso o primeiro dever judicial fosse realmente cumprido.

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