• Autor do post:
Você está visualizando atualmente O ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

O processo penal brasileiro admite a figura do assistente de acusação. Todavia, uma questão parece merecer uma reflexão: sob a égide das normas e princípios constitucionais que regem a ação penal, o assistente de acusação pode formular, por si só e até contrariando entendimento do Ministério Público, pedido de condenação.

A meu pensar – mas posso estar errado -, a resposta negativa se impõe. Explico.

As principais faculdades processuais do assistente de acusação estão elencadas no art. 271 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual lhe “será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598”.

Ao lado dessas faculdades, o assistente também pode formular quesitos e indicar assistente técnico (CPP, art. 159, § 3º), requerer o desaforamento (CPP, art. 427), participar dos debates no tribunal do júri (CPP, art. 476, § 1º) e interpor apelação quando o Ministério Público não o fizer (CPP, art. 598).

A questão é saber se, entre os atos legais permitidos ao assistente de acusação, está o de agir como se “co-titular” da ação penal fosse a ponto de contrariar o pedido absolutório do Ministério Público e, assim, formular pleito de condenação.

O assistente de acusação é um sujeito secundário – e dispensável – do processo penal. Sua função, como a própria denominação já induz (assistente), é de auxiliar o Ministério Público no curso do processo criminal.

Como alerta EUGÊNIO PACCELI, “o assistente não é o titular da acusação nem tem os mesmos poderes e faculdades” reconhecidos ao Ministério Público. “Sua atividade é eminentemente supletiva daquela atribuída ao Ministério Público” (CURSO DE PROCESSO PENAL. 20. São Paulo: Atlas, 2016, p. 486, grifo nosso).

Ora, se o assistente de acusação é um sujeito secundário – e dispensável – e auxiliar do Ministério Público, a ilação que se impõe é de que ele está vinculado ao posicionamento final desse órgão. Logo, não pode o assistente contrariar eventual pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, que – repita-se – é o verdadeiro e único titular da ação penal.

Permitir que o assistente atue como se titular da ação penal fosse implica transformar o Ministério Público numa figura decorativa do processo penal, cuja função será apenas oferecer a denúncia e acompanhar de forma passiva e até contemplativa a atuação do assistente. Parece que os papéis se inverterão: o Ministério Público virará mais um “assistente” do seu assistente do que o protagonista da ação penal.

Se analisasse essa questão, Galvão Bueno, narrador esportivo da Rede Globo, indagaria:

– Pode isso, Arnaldo?

Certamente que Arnaldo Cézar Coelho, ex-árbitro de futebol comentarista de arbitragem, responderia:

– Não pode não, Galvão! A regra é clara: o assistente de acusação não pode agir como se “co-titular” da ação penal fosse. Ele é assistente, auxiliar, do Ministério Público, e não outro titular da ação penal.

Realmente, o CPP deixa claro que o assistente de acusação não é “co-titular” da ação penal. Deixar claro que o assistente está submetido à manifestação do Ministério Público. Tanto é assim que o juiz deve ouvir o Ministério Público sobre a admissão e as provas eventualmente propostas pelo assistente. É o que dispõem os arts. 271, § 1º, e 272 do CPP, in litteris:

“Art. 271. […]

§ 1o O juiz, ouvido o Ministério Público, decidirá acerca da realização das provas propostas pelo assistente.

Art. 272.  O Ministério Público será ouvido previamente sobre a admissão do assistente.”

Se não inconstitucional, é necessário compatibilizar a figura do assistente de acusaçãocom as normas do devido processo legal e, mormente, com o art. 129, I, da CF. de tal sorte que a atuação desse sujeito processual esteja vinculada sempre à manifestação final do Ministério Público.

Daí a necessidade de se proceder à chamada interpretação conforme a Constituição do art. 268 a 273 do CPP – e de todos os dispositivos legais que tratam do mesmo tema – à luz do referido art. 129, I, da Carta Magna de 1988, na qual está positivado que a titularidade da ação penal é privativa do Ministério Público.

Sobre a técnica da interpretação conforme a Constituição, o ministro ALEXANDRE DE MORAES, do STF, explica:

“A supremacia das normais constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.

Extremamente importante ressaltar que a interpretação conforme a Constituição somente será possível quando a norma apresentar vários significados, uns compatíveis com as normas constitucionais e outros não, ou, no dizer de Canotilho, ‘a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela’.

[…]

Para que se obtenha uma interpretação conforme a Constituição, o intérprete poderá declarar a inconstitucionalidade parcial do texto impugnado, no que se denomina interpretação conforme com redução de texto, ou, ainda, conceder ou excluir da norma impugnada determinada interpretação, a fim de compatibilizá-la com o texto constitucional. Essa hipótese denominada interpretação conforme sem redução de texto” (DIREITO CONSTITUCIONAL. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 785-786, grifo nosso).

O Supremo Tribunal Federal tem empregado a técnica da interpretação conforme a Constituição para estabelecer o sentido e o alcance de normas infralegais no contexto normativo da Constituição Federal de 1988. Exemplo disso foi o julgamento da ADI 1194/DF (dirigida contra diversos dispositivos da Lei 8.906/94 / Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil), e também a decisão proferida na ADI 4389 MC/DF(proposta contra dispositivos da Lei Complementar 116/2003).

Com efeito, infere-se que a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos legais que contemplam a figura do assistente de acusação deve ser no sentido de que não cabe a ele formular, por si só e até contrariando o entendimento do Ministério Público, pedido de condenação contra o acusado, sob pena de deixar de ser auxiliar do titular da ação penal para se convolar em outro titular do direito (ou poder) de punir. Ou seja, o pedido de condenação do acusado deve ser faculdade processual exclusiva do Ministério Público.

Essa é a interpretação que – a nosso juízo (mas podemos estar errados) – compatibiliza as normas legais que tratam do instituto do assistente de acusação com as regras e princípios do devido processo legal e, precisamente, com o texto do art. 129, I,da Constituição Federal.

Nessa linha expositiva, cumpre advertir que o Superior Tribunal de Justiça, embora por outros fundamentos, já reconheceu que o assistente de acusação está vinculado e limitado pela atuação do Ministério Público. Disse-o em julgados como este:

 

“PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO.    CRIME DE INCÊNDIO E ESTELIONATO. INTEMPESTIVIDADE DA APELAÇÃO. INSTRUÇÃO DEFICIENTE. PROVIMENTO DO APELO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO PARA DESCLASSIFICAR A CONDUTA. IMPOSSIBILIDADE. HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 271 DO CPP. PRECEDENTES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

[…]

4. Esta Corte firmou o entendimento de que a legitimidade do assistente de acusação é restrita às hipóteses previstas no art. 271 do Código de Processo Penal, de forma que sua função é auxiliar o Ministério  Público  na  ação  penal  pública,  tendo  aptidão  para interferir  no  processo,  e  não  para promover a ação penal, não possuindo, portanto, legitimidade para recorrer pleiteando a desclassificação do crime para delito diverso daquele que o paciente foi denunciado e mantido pelo Parquet na condenação.

[…] 6.  Writ não conhecido. Ordem concedida de ofício, para anular o julgamento da Apelação Criminal […], determinando que outro seja proferido pelo TJPR, como entender de direito (STJ, HC 361662/PR, 5ª Turma, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, j. 16/03/2017, DJe 23/03/2017, grifo nosso).

Portanto, no contexto normativo instaurado pela Constituição Federal de 1988, força é conferir ao art. 268 a 273 do CPP – e de todos os dispositivos legais que tratam do mesmo tema – interpretação conforme a Constituição, reconhecendo que o assistente de acusação está vinculado às manifestações do Ministério Público, pelo que não tem legitimidade para formular pedido de condenação quando esse órgão pedir a absolvição.

Por César Ramos, advogado criminalista e membro-fundador do Instituto Paraense do Direito de Defesa – IPDD

Deixe um comentário