Durante sua participação no III Simpósio Nacional de Combate à Corrupção, organizado pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia (ADPF), em Salvador no dia 24 de agosto de 2018, o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, defendeu a criação de uma lei específica para o habeas corpus.
O que levou o ministro a sustentar isso foi a sua preocupação com o crescimento da impetração de habeas corpus nas Cortes Superiores.
Pois bem. Está patente que o ministro, na esteira do que já vem acontecendo na jurisprudência, quer limitar o cabimento do habeas corpus.
Com todo respeito ao ministro Schietti, entendo – mas posso estar errado – que a limitação do habeas corpus vem na contramão de sua história.
Isso porque, ao longo dos anos, desde de sua origem mais remota em Roma, passando por sua fonte mais precisa (Magna Carta do Rei João Sem Terra, 1215), o habeas corpus veio ganhando espaço a ponto de se constituir não apenas no instrumento hábil a proteger a liberdade de locomoção, mas também de tutelar o próprio devido processo legal.
Nem mesmo no Regime Militar o habeas corpus sofreu tamanha restrição como a que lhe vêm impondo os tribunais.
Ora, num Estado Democrático de Direito, as garantias constitucionais, de que é maior exemplo o habeas corpus, devem ser ampliadas, e não restringidas.
Num ponto eu concordo com o ministro: a necessidade de melhor disciplinar o habeas corpus. Só que, a meu ver, para torná-lo mais efetivo e célere.
É que, atualmente, o excesso de formalidades tem atrasado o processamento e julgamento do habeas corpus nos tribunais.
A meu pensar – mas posso estar errado -, duas questões precisam ser melhor tratadas no processo de habeas corpus.
A primeira questão diz respeito às informações da autoridade coatora.
Com efeito, o Código de Processo Penal, sem seu art. 662, prevê a solicitação de informações à autoridade coatora, dispondo in verbis:
“Art. 662. Se a petição contiver os requisitos do art. 654, § 1o, o presidente, se necessário, requisitará da autoridade indicada como coatora informações por escrito. faltando, porém, qualquer daqueles requisitos, o presidente mandará preenchê-lo, logo que lhe for apresentada a petição” (grifo nosso).
O CPP também prevê a dispensa das informações, a juízo do Relator. É o que se depreende da letra do art. 664, que reza:
“Art. 664. Recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte” (grifo nosso).
Como se dessume dos dispositivos supratranscritos, o pedido de informações é apenas uma FACULDADE do Relator, que poderá requisitá-las ou não.
Deveras, em casos em que a impetração está bem instruída, as informações da autoridade coatora não são imprescindíveis.
Ocorre que o pedido de informações à autoridade coatora é feito sem que o Relator analise a necessidade de solicitá-las. Isso significa que, em alguns casos, a solicitação tem apenas o condão de atrasar o julgamento do habeas corpus, devido à evidente desnecessidade delas.
Para piorar, é comum a autoridade coatora não responder ao pedido de informações no prazo fixado pelo Relator (geralmente 48 horas), o que, geralmente, faz com o pedido seja reiterado uma ou várias vezes.
Vários são os fatores que concorrem para o atraso na prestação das informações, dos quais se destacam:
a) o juiz simplesmente não responde no prazo que lhe foi fixado;
b) o juiz alega que os autos estão para o Ministério Público ou para a Polícia, o que lhe impede de prestar as informações;
c) o juiz não aproveita as informações já prestadas em outro HC referente ao mesmo caso.
Nessa toada, importa ponderar que, na Justiça Federal, quando os autos estão para o MPF ou para a Polícia Federal e o juiz recebe do Tribunal Regional Federal ou dos Tribunais Superiores algum pedido de informações, ele costuma solicitar os autos para que possa informar sobre o HC e, após, devolve-os. Outras vezes, ele apenas pede as informações ao MPF ou a Polícia Federal. Seja como for, o juiz federal envida esforços para informar.
Diferente se dá na Justiça Estadual. Nesta, se os autos estiverem com o MP ou com a Polícia, ao invés de solicitá-los ou pedir informações a esses órgãos, o mais comum é o juiz simplesmente informar que não pode atender à solicitação do Relator. Nesse aspecto, falta um pouco de atitude ou diligência ao magistrado.
Para equacionar os problemas referentes à prestação das informações pela autoridade coatora, o ideal seria que o Relator analisasse, caso a caso, a efetiva necessidade de solicitar informações ao juízo coator. É o que se dá, v.g., no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, tribunal no qual o Relator, entendendo devidamente instruído o HC, dispensa as informações e dá imediatamente vista dos autos ao Ministério Público pelo prazo de 2 dias (RISTJ, art. 202).
A outra questão que tem repercutido na delonga no julgamento do habeas corpus é o parecer do Ministério Público.
Aqui cumpre esclarecer que o CPP, mesmo tendo sido inspirado por ideias fascistas de Benito Mussolini, NÃO PREVIU – E NÃO PREVÊ – a participação do Ministério Público no processo de habeas corpus.
A desnecessidade de ouvir o Ministério Público em processo de habeas corpus imperou até o ano de 1969, quando, sob a égide do Ato Institucional no. 5, foi editado o Decreto-Lei 552, de 25/04/1969, que, dispondo sobre a concessão de vistas àquele órgão, assim normatizou:
“Art. 1º Ao Ministério Público será sempre concedida, nos Tribunais Federais ou Estaduais, vista dos autos relativos a processos de ‘habeas corpus’ originários ou em grau de recurso pelo prazo de 2 (dois) dias.
§ 1º Findo êsse prazo, os autos, com ou sem parecer serão conclusos ao relator para julgamento, independentemente de pauta.
§ 2º A vista ao Ministério Público será concedida após a prestação das informações pela autoridade coatora salvo se o relator entender desnecessário solicitá-las, ou se solicitadas, não tiverem sido prestadas.”
Como se infere, a intervenção do Ministério Público no processo e julgamento de habeas corpus foi uma criação do Regime Militar, que visava a dificultar a concessão das ordens impetradas, especialmente quando os pacientes eram os “inimigos do governo”.
De qualquer sorte, mesmo determinando a oitiva do Ministério Público pelo prazo de 2 (dois) dias, aquele Decreto-Lei no. 552/1969 assentou a prescindibilidade do parecer daquele órgão e das próprias informações da autoridade coatora.
Como esse Decreto-Lei teve sua fonte no A.I. 5, surge uma questão interessante, a saber: com a revogação do A.I. 5 e a promulgação da Constituição Federal de 1988, esse Decreto-Lei ainda está em vigor? Se está, há se prevalecer o prazo de apenas 2 (dois) para o Ministério Público, se quiser, emitir parecer, sendo certo que o habeas corpus deve ser julgado, com ou sem parecer e com ou sem as informações da autoridade coatora. Se não está mais em vigor (penso nesse sentido), há de se reconhecer a desnecessidade de ouvir o Ministério Público em processo de habeas corpus.
Seja qual for a resposta a essa pergunta, o fato é que os tribunais incorporaram em seus regimentos internos ou na sua rotina a intervenção do Ministério Público no processo de habeas corpus, ora concedendo-lhe vista pelo prazo de 5 dias, ora pelo prazo de 2 dias.
O problema, nesse ponto, é que, antes da adoção do processo judicial eletrônico (PJE), ou seja, pelo processo físico, o prazo do Ministério Público era contado da intimação pessoal. Agora, com o processo judicial eletrônico (PJE), esse prazo só começa a ser contado quando o Ministério Público realizar a consulta prevista no art. 5º, § 1º, da Lei 11.419/2006 (que disciplina o processo judicial eletrônico) que assim positiva:
“Art. 5º As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2o desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.
§ 1o Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização.”
Acontece que a parte, no caso, o Ministério Público, tem o prazo de até 10 (dez) dias para realizar a consulta eletrônica com efeito de intimação, conforme prevê o § 3º do referido art. 5º da Lei 11.419/2006.
Isso significa que, na prática, se o Ministério Público tomar realizar a consulta eletrônica com efeito de intimação no último dia do prazo – o que comumente tem acontecido -, ele terá mais 2 (dois) ou 5 (cinco) dias para emitir o parecer, totalizando o prazo de 12 (doze) a 15 (quinze) dias.
O mais interessante é que não raro acontece do Ministério Público se manifestar no último dia e na última hora do seu prazo no sentido de que o Relator do HC reitere o pedido de informações ao juízo coator. Nessa hipótese, o Relator acaba deferindo o pleito do Ministério Público, o que contribui para o atraso na tramitação e julgamento do habeas corpus.
É preciso conferir mais eficácia à intimação do Ministério Público no processo judicial eletrônico de habeas corpus. E, salvo engano, a solução parece estar na aplicação do § 5º do art. 5º da mencionada Lei 11.419/2006. Leia-se:
“Art. 5o […]
[…]
§ 5o Nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz.”
Como se vê, nos “casos urgentes” é possível realizar a intimação por meio mais célere e eficaz que não mera “consulta eletrônica” prevista no § 1º do art. 5º da predita Lei 11.4019/2006.
Ora, os casos tratados nos habeas corpus, por sua natureza, são sempre urgentes. Logo, é possível adotar a intimação física por meio de oficial de justiça ou outro meio mais eficaz, de tal sorte que o Ministério Público seja intimado o mais breve possível, e não nos termos dos preditos parágrafos 1º e 3º do art. 5º daquela Lei, os quais acabam por conferir àquele órgão o prazo de até 15 (quinze) dias para emitir seu parecer.
Nessa ordem expositiva, seria até o caso de se questionar sobre a imprescindibilidade ou prescindibilidade do parecer ministerial.
Pela característica e natureza do habeas corpus, exsurge o entendimento de que o parecer do Ministério Público não é imprescindível para o julgamento do habeas corpus.
E quem diz isso não sou eu. Não! Quem o diz é a legislação regedora do HC. Lembremos: o Código de Processo Penal NÃO PREVÊ a participação do Ministério Público em processo de habeas corpus.
A propósito, calhar destacar que o Regimento Interno do STF contempla a possiblidade de se dispensar a oitiva do Ministério Público nos casos em que “houver urgência, ou quando sobre a matéria versada no processo já houver o Plenário firmado jurisprudência”, salvo na ação penal originária ou nos inquéritos. É o que está plasmado no seu art. 52, parágrafo único.
Foi aplicando essa norma regimental que a Segunda do STF, ao julgar o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança no. 32.482, reconheceu a desnecessidade do parecer do Ministério Público Federal.
Ora, sendo o habeas corpus uma garantia constitucional com o mesmo DNA do mandado de segurança, nada impede que, em casos urgentes e/ou quando a matéria estiver pacificada no próprio Tribunal estadual ou federal, ou nos Tribunais Superiores, o Relator dispense a oitiva do Ministério Público.
Finalizando, exsurge realmente necessário melhor regulamentar o habeas corpus, de modo que ele cumpra efetiva e celeremente a sua missão constitucional: a tutela da liberdade e do devido processo legal.
Por Cesar Ramos, advogado criminalista e membro-fundador do Instituto Paraense do Direito de Defesa – IPDD